domingo, 14 de abril de 2024

Nós e o Marxismo

Uma resenha crítica dos escritos de Florestan 


"Nós e o Marxismo" é uma importante obra do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes. Livro pequeno, de síntese, Nós e o Marxismo explora e debate as ideias do marxismo e sua relevância para a compreensão e transformação da sociedade. Florestan discute a aplicação do programa do marxismo como possibilidade real e científica para a transição ao socialismo. Em outras obras ele fala mais sobre a perspectiva  revolucionária para a realidade brasileira, abordando questões prementes da situação nacional, sempre abordando questões como desigualdade social, estratificação e luta de classes.

Florestan analisa (como intelectual orgânico, ou seja, militante político) de forma crítica as contradições e desafios do marxismo em relação à prática política e social. Sua obra é uma contribuição significativa para o entendimento do pensamento marxista e suas implicações na sociedade.

Em "Nós e o Marxismo", especificamente, Florestan Fernandes explora conceitos-chave do marxismo como alienação e objetificação do trabalhador, em relação à realidade vivida pela classe laboral em sua relação com o trabalho, com a ideologia e com os aparelhos ideológicos de estado.  Florestan nesta obra não usa o termo althusseriano de "aparelhos ideológicos de estado. Colocamos aqui porque entendemos que o conceito expressa bem o conjunto da questão ideológica no âmbito da discussão marxiana.

A alienação, por exemplo, conforme discutida por Marx, refere-se à perda da capacidade de os indivíduos se identificarem com o processo de trabalho e, por extensão, com os produtos do seu trabalho. Isso ocorre devido à separação entre os trabalhadores e os meios de produção, devido à separação da função do trabalhador em uma ponta da produção em relação ao conjunto completo da produção. O que leva a uma sensação de desvinculação e falta de controle sobre suas vidas.

Quanto à objetificação da pessoa, relaciona-se à transformação dos indivíduos em meros objetos dentro do sistema capitalista, onde são tratados como recursos descartáveis ou mercadorias, em vez de serem reconhecidos como seres humanos completos, capazes de dominar todo o processo produtivo. 

Florestan explora como esses conceitos se manifestam na sociedade, especialmente no contexto das relações de trabalho e das estruturas de poder. Busca demonstrar como o marxismo pode oferecer compreensões importantes para enfrentar as formas de alienação e a exploração do homem pelo homem.

Neste sentido, cumpre apontar que o conceito chave do texto é luta de classes, um conceito central para o marxismo e que descreve o conflito entre os diferentes grupos sociais, especialmente entre a classe trabalhadora (proletariado) e a classe proprietária dos meios de produção (burguesia). De acordo com Marx, a história das sociedades humanas é caracterizada por essa luta constante, na qual os interesses e objetivos desses grupos frequentemente entram em conflito.

Marx argumentava que a exploração econômica e a desigualdade social eram inerentes ao sistema capitalista, onde os trabalhadores vendem sua força de trabalho aos donos dos meios de produção em troca de salários, enquanto estes últimos obtêm lucro através da mais-valia, ou seja, da diferença entre o valor criado pelo trabalho dos operários e o salário pago a eles.

A luta de classes, segundo Marx, era impulsionada pela busca do proletariado por emancipação e igualdade, visando à superação das condições opressivas e desiguais impostas pelo sistema capitalista. Marx via nessa luta a força motriz para a transformação da sociedade rumo a um sistema mais justo e igualitário.

Essa visão da luta de classes influenciou significativamente o pensamento social e político ao longo do tempo, sendo um conceito fundamental no entendimento das dinâmicas sociais e das mudanças históricas propostas pelo conjunto do movimento operário, que é o grupo social que mais tem interesse na emancipação humana. 

Engels, na obra "Do socialismo utópico ao socialismo científico", traça a evolução do pensamento socialista desde suas origens utópicas até o surgimento de uma abordagem mais científica e materialista, conforme desenvolvida por Marx e ele próprio.

Esta obra de Engels talvez seja o texto mais clássico sobre a questão do marxismo como ferramenta de luta dos trabalhadores, à medida em que a evolução do socialismo caminha por um entendimento sociólogico sobremaneira científico, e se estabelece como ideologia crítica às correntes utópicas do socialismo idealista, que idealizava a sociedade perfeita e buscava reformas baseadas em concepções abstratas, sem considerar as condições materiais e econômicas reais. 

Em sua obra, Engels argumenta que o socialismo científico, baseado nas análises de Marx, representa uma compreensão mais profunda das leis que regem o desenvolvimento histórico e das contradições inerentes ao sistema capitalista, e destaca a importância da abordagem materialista e dialética do socialismo, que busca compreender as relações de produção, a luta de classes e a dinâmica histórica como elementos fundamentais para a transformação revolucionária da sociedade. 

Marx e Engels, de posse de uma  apreensão crítica da filosofia hegeliana, apontam para o materialismo histórico e dialético. Esta é a escola de Florestan; é disso que Florestan fala quando aponta para questões concretas, e para a ação concreta da organização política do proletariado.

No marxismo, a abordagem do concreto como a síntese de múltiplas determinações da realidade é fundamental para a compreensão da realidade. De acordo com Marx, o concreto não é apenas a soma mecânica de partes separadas, mas sim a resultante de um processo complexo de interconexões e relações entre estas partes.

Na dialética marxista, a síntese do concreto surge da compreensão das contradições e das interações dinâmicas entre os diversos elementos que compõem uma situação ou fenômeno. Marx enfatiza que o concreto é o resultado da unidade e luta dos opostos, onde as contradições internas e as tensões dialéticas são essenciais para a compreensão da realidade em sua totalidade.

Essa abordagem dialética busca captar a dinâmica e o movimento inerente aos processos sociais, econômicos e históricos, reconhecendo que as situações e fenômenos estão em constante transformação. Portanto, a síntese do concreto na dialética marxista implica uma compreensão profunda das relações sociais, das forças em conflito, das classes sociais em disputa e das contradições subjacentes que moldam a realidade.

Tanto na obra de Florestan Fernandes quanto no marxismo, a revolução social desempenha um papel central nesta transformação das estruturas sociais e na busca por uma sociedade diferente da anterior.

Florestan, intelectual de primeira qualidade, mas também militante socialista, defendia a necessidade da revolução social (em seu caso a revolução operária) como um instrumento de superação do modo de reprodução social. A revolução operária varreria as desigualdades e injustiças presentes na sociedade capitalista. 

Em suas análises, Florestan destacava a importância da mobilização e da conscientização (de "classe em si" para "classe para si", como no jargão de Marx) da classe trabalhadora para a conquista de seus direitos e para a transformação radical das estruturas sociais opressivas. O marxismo é isso, quando a revolução social é concebida como o momento em que a classe trabalhadora, consciente de suas condições e interesses, se organiza para derrubar as relações de produção capitalistas e estabelecer um novo modo de organização social. Marx via a revolução como o ápice da luta de classes, onde as contradições do sistema capitalista atingiriam seu ponto máximo e a classe trabalhadora tomaria o controle dos meios de produção.

A revolução social representa, portanto, um processo de ruptura com as estruturas opressivas e exploradoras, visando a construção de uma sociedade pós capitalista, onde a evolução dos acontecimentos rumaria a reprodução social para um modelo livre do capital, e por conseguinte, da exploração.

Em sua época, 40 anos atrás, Florestan via no socialismo da União Soviética uma possibilidade real de transição. A queda do muro de Berlim e o fim da URSS representaram o regresso dos sonhos operários a uma fase anterior. Mais à frente falaremos disso.

Cumpre pontuar outra preocupação de Florestan na famosa brochura em questão, a questão da contrarrevolução. Tanto Florestan quanto Marx abordaram a questão da contrarrevolução social em seus escritos, embora em contextos e perspectivas diferentes. Florestan, em suas análises sobre a sociedade brasileira, destacou a presença de forças conservadoras que se opunham às transformações sociais e à emancipação da classe trabalhadora. Ele identificou a existência de uma elite dominante (as burguesias) que buscava preservar seus privilégios e impedir a mobilização e a conscientização das classes populares. Essa elite, segundo Florestan, atuava como uma força de contrarrevolução social, utilizando mecanismos de controle e repressão para manter a ordem vigente e impedir mudanças estruturais significativas. 

Para o operariado seria de se pensar uma aliança política com a burguesia nacional, por exemplo, para a libertação do imperialismo e para criar um caminho de desenvolvimento próprio. Mas a burguesia nacional nunca teve esse interesse. Isso será objeto de reflexão em suas obras. Outros intelectuais, com destaque para Caio Prado Júnior, também levantaram essa questão. Mas este debate iria longe demais caso quiséssemos aprofundar.

Para Marx, a contrarrevolução social era representada principalmente pelas forças do capitalismo que buscavam preservar as relações de produção baseadas na exploração da classe trabalhadora. Ele identificava o Estado como um instrumento de dominação da classe dominante, capaz de reprimir levantes populares e preservar a ordem estabelecida em favor dos interesses burgueses.

De Marx para cá, as burguesias aprimoraram de diversas formas o controle do aparelho estatal.

Em suma, em ambas as perspectivas, de Florestan e de Marx, a contrarrevolução social representa as forças que se opõem à emancipação e à transformação revolucionária da sociedade. Tanto Florestan quanto Marx reconheciam a existência de obstáculos significativos para a realização de mudanças profundas nas estruturas sociais, destacando a resistência das classes dominantes e das instituições estabelecidas.

Em diversas de suas obras, Florestan abordou a questão dos mecanismos utilizados pela burguesia para retardar ou impedir a tomada do poder pelo proletariado e para manter sua dominação de classe. Em "A Revolução Burguesa no Brasil", por exemplo, Florestan analisa como a classe dominante, representada pela burguesia, desenvolve estratégias de controle e perpetuação de seu poder, destaca que a burguesia, detentora dos meios de produção e do poder econômico, utiliza uma variedade de mecanismos para preservar seus interesses e impedir a ascensão do proletariado. Entre esses mecanismos estão a manipulação ideológica por meio da educação e da mídia, a cooptação de lideranças populares, a repressão policial e o uso do estado como instrumento de preservação da ordem vigente.

Essas estratégias visam desarticular movimentos sociais e sindicais, desmobilizar a classe trabalhadora e impedir a conscientização das massas sobre suas condições de exploração. Florestan ressalta que tais mecanismos contribuem para a manutenção da desigualdade social e para o retardamento das transformações estruturais necessárias para uma sociedade mais justa.

Com efeito, o fim da URSS foi um duro golpe contra a classe trabalhadora mundial. Embora o gigante soviético já estivesse em seus estertores enquanto Florestan escrevia as páginas do artigo em análise, havia no socialismo real a objetivação de algo que (embora precisasse de uma revolução social interna à revolução social) se podia chamar de socialismo, de experiência de transição ao socialismo, e que jogava peso extraordinário no movimento operário internacional.

István Mészáros em suas análises abordou a situação do movimento operário após o declínio e dissolução da União Soviética sob uma perspectiva crítica e atenta às transformações estruturais no contexto global.

Segundo Mészáros, a dissolução da União Soviética teve impactos significativos sobre o movimento operário em escala mundial. A perda da influência política e ideológica do bloco soviético alterou as dinâmicas das lutas de classes e reconfigurou as relações de poder no cenário internacional. Após esse período, o movimento operário enfrentou desafios profundos em sua organização e capacidade de resistência, porque, diante do colapso do socialismo real, as forças do capitalismo se fortaleceram e intensificaram sua ofensiva contra os direitos trabalhistas, os sindicatos e as conquistas sociais historicamente associadas ao movimento operário. A emergência de uma lógica neoliberal que buscou desmantelar as proteções sociais e enfraquecer a capacidade de mobilização dos trabalhadores, a fragmentação e a precarização do trabalho, impulsionadas pela globalização econômica, representaram novos desafios para o movimento operário. A expansão das relações de produção capitalistas em escala global reconfigurou as condições de trabalho, tornando mais complexa a organização e a solidariedade entre os trabalhadores.

Nesse contexto Mészáros enfatiza a necessidade de repensar as estratégias e formas de organização do movimento operário diante das novas condições impostas pelo capitalismo globalizado. Ele destaca a importância da unidade e da resistência coletiva dos trabalhadores em face das transformações estruturais e das investidas do capital contra seus direitos e condições de vida. São considerações que Florestan certamente apontaria caso tivesse vivido para assistir às transformações com o fim da URSS e com o estabelecimento do capitalismo neoliberal.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Fui na missa do padre Marcelo Rossi

Essa semana fui na missa do padre Marcelo Rossi, gente. Bom, o padre é muito famoso, dispensa apresentações. 

Vou falar aqui das impressões que tive. Achei que essa experiência merecia um comentário, uma análise. Então lá vai.


Padre Marcelo pop star


Tô agora com 39 anos e me lembro bem da ascensão do padre Marcelo. No fim dos anos 90 virou uma febre no Brasil. Era um fenômeno religioso inusitado. Outros padres já faziam esse trabalho midiático, com música, mas nada na proporção do que o Marcelo Rossi alcançou. Padre Marcelo estourou porque trabalhava com bonitas músicas do mundo gospel que tinham apelo catártico. O Brasil, de população católica e carente, num momento delicado socialmente, abraçou o carisma pop do padre novo e bonito que trazia alento religioso e místico, numa mensagem popular, fácil de ser assimilada, democrática. 

Depois disso muitas águas rolaram, mas o padre Marcelo se consolidou como a grande figura midiática do catolicismo.

Acompanhei essa trajetória de modo crítico. Sou católico praticante mas o padre Marcelo evidentemente não é o meu estilo preferido de padre. Tenho um amigo que frequenta as missas dele e que ficava de me levar lá pra conhecer. Demorei uns anos pra me animar a ir e fui agora, nesse último fim de semana. Segue então o relato do que vi lá. 


O lugar. A estrutura 


O lugar é estranho. Não muito, mas não é como um templo religioso convencional. É um espaço aberto, um imenso galpão sem paredes, com cadeiras de plástico dispostas em frente a um altar muito alto, distante do povo. Em frente a esse imenso altar fica um altar menor, improvisado, que é utilizado em algumas celebrações menores. O lugar é muito grande, tem alguns jardins, é espaçoso e facilita o trânsito da multidão. Na missa que eu fui calculei estarem presentes entre 4 e 5 mil pessoas. É gente pra caramba. Sério. No local tem várias lojinhas de produtos do padre Marcelo e de itens religiosos em geral; tem uma lanchonete bem grande e banheiros realmente imensos. Tem um estacionamento também. A estrutura é muito boa. 

Circulei pelo espaço e fui observando. O que mais me chamou a atenção, como católico, é que o santuário não tem capela. O sacrário, que para nós católicos é o lugar mais importante e precioso de uma igreja, fica ao lado do grande altar mencionado, ou seja, inacessível ao povo. É um sacrário bonito. Pelo menos isso. O templo também conta com bonitos painéis, de um artista italiano, me disseram. Não pesquisei pra ver. De perto eles não são muito interessantes. À média e longa distância eles ficam muito bonitos. São imensos, pra fazer jus, naturalmente, ao tamanho do lugar. Dentro do espaço há ainda algumas imagens de Nossa Senhora e jardins e árvores pequenas. Podia ser mais arborizado. O som do templo é muito bom mas há eco da bateria ao fundo do terreno, onde um muro separa o santuário de um corredor que serve de trânsito a automóveis que adentram suas dependências.

O que mais me chamou atenção depois foram as lojinhas. Ou melhor, os produtos das lojinhas. Além de terços, bíblias e imagens de santos, as lojinhas tem lá os livrinhos do padre e camisetas dele também. 

É horrível o sujeito comprar camiseta de padre. Imagina! Tinha uma lá que superava a cafonice toda da coisa; uma do padre Marcelo rodeado de uma bola de fogo, e embaixo os seguintes dizeres: "treino abençoado por Jesus". Exatamente, isso mesmo que você pensou, a camiseta do marombeiro de Jesus... rs. Uma camiseta pro sujeito mostrar na academia que gosta do padre Marcelo.

O padre Marcelo virou uma mercadoria, né. Imagino as vultosas somas de dinheiro que caem ali. O negócio tem forte apelo comercial. O que é meio natural nos dias de hoje também. Verdade seja dita. O lugar lembra a Canção Nova, que é também uma famosa plataforma católica de comercialização da fé. 


A missa. Os fiéis. O padre


A missa em si é bonita. Não nego. Com muita música, num ambiente que leva o sujeito à espiritualidade, à oração. Mas tudo sem reflexão crítica, claro. Tudo muito no nível do senso comum. O padre mesmo não fala muitas coisas. Ele é tipo um animador, puxando as músicas, antecipando as letras pra multidão cantar junto.

Padre Marcelo é um sujeito claramente limitado intelectualmente. Isso aí qualquer pessoa nota. É um sujeito de platitudes, de senso comum, que revela nas suas poucas palavras sinais de uma fé de certa forma infantil e fantasiosa. E o seu público é imagem direta disso. São pessoas simples do povo, muitas delas cobertas de terços e outras referências e adornos religiosos. Muitas famílias, muitos idosos. Arrisco dizer que mais da metade ali eram idosos. Enfim, pessoas simples, inclusive malucos. Com todo o respeito que eu tenho pelos malucos, gente. Maluco pra mim às vezes é o melhor tipo de gente.

Mas, enfim a sensação é essa, de uma multidão trabalhadora e oligofrênica, gente de vida funcional, teleguiada, uma manada praticamente. Isso é triste. Um povo sem educação, sem formação, ovelhas de um rebanho que fica refém do mais do mesmo.

Curioso que o próprio padre Marcelo é um sujeito claramente tutelado. Isso desde sempre. Ele não celebra as missas. Está sempre acompanhado do seu bispo. Nessa vez que fui, o bispo estava viajando. Quem presidiu a missa foi o bispo aposentado. Ou seja, a igreja não dá nem permissão pra ele presidir as missas. Queria entender melhor o porquê disso. O padre Marcelo não faz as pregações. Ele é só um animador de auditório num evento em que o povo aparece por sua causa. É impressionante.


É isso então 


Saí de lá com essas impressões. Difícil eu voltar. Essa minha incursão no mundo do padre Marcelo aconteceu na semana em que o padre foi interpelado por internautas a fazer a defesa do padre Júlio Lancellotti, que foi ameaçado de se tornar alvo de uma CPI na Câmara Municipal de São Paulo. O padre Marcelo não quis se posicionar. Claramente está no espectro político oposto ao do padre Júlio. Tudo indica que possa ser bolsonarista, não se coloca sobre questões sociais prementes, como é comum a religiosos fazerem. É um isentão, um conformista, um cara que lava as mãos. Ou seja, é um cara complicado. Não esperem muito dele. Creio que as pessoas não esperam mesmo.





segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Cuidado com a matrix!


"BBB pra mim é uma oportunidade de estar milionária. E pra eu ganhar, alguém precisa perder"


Frase clichê que poderia sair da boca de qualquer um desses garotos bolsonaristas ou agro-boys que participam anualmente do Big Brother, né. Mas não. A frase foi dita na chamada da tv por uma participante apresentada como assistente social. Uma moça de 24 anos, de Maceió. Uma menina com uma história triste. Começou a apresentação na chamada da tv dizendo que teve uma infância difícil, com muitas limitações materiais, etc. 

Essa moça me chamou a atenção porque é minha colega de Serviço Social. Tô indo agora pro quarto ano da graduação. Estou fazendo estágio já e planejando prestar concursos pra área. 

Muita gente não conhece, mas o Serviço Social é uma área muito progressista. A categoria é hegemonizada por uma diretriz teórica marxiana, primando por um discurso muito crítico do capitalismo e das relações sociais estabelecidas; tem um código de ética muito avançado; tem cursos universitários e pesquisadores que chamam atenção por sua vanguarda teórica arrojada e idealista. Existem, claro, os resquícios do passado conservador da profissão, que no seu início se caracterizava por um arranjo teórico doutrinário que mesclava positivismo, funcionalismo e o neotomismo da igreja católica (a principal origem da profissão). Mas esse passado, contudo, é cada vez mais relegado à defenestração. As novas gerações da categoria são formadas nos bancos das universidades com bastante empenho dos professores para o esclarecimento das questões sociais e das contradições econômicas do capitalismo. 

Por isso que me chamaram a atenção as duas frases finais da apresentação da jovem assistente social. Afinal, como uma pessoa que passou por quatro anos de graduação, num curso que tanto repisa as injustiças desse sistema de morte, pode cair no senso comum ordinário e fajuto de querer ser milionária numa sociedade de tamanha miséria social? Ou como tem a coragem de reafirmar um princípio egoísta da contemporaneidade neoliberal ao dizer que pra chegar a seu objetivo outras pessoas vão perder mesmo? Esse tipo de coisa soa estranha na boca de uma jovem assistente social.

O mundo é cheio de contradições, claro. Mas vale aqui o comentário, o apontamento. Não se trata também de eu querer participar no cancelamento da moça. É capaz que ela seja cancelada. Os tempos são de cancelamento. Eu me oponho frontalmente a isso. A crítica tem que ser ponderada e contextualizada. A moça é jovem e pode amadurecer as ideias nos próximos anos. 

O que me ocorre, e quero deixar claro aqui, é que tenho observado um duro travar de ideias na bolha esquerdista entre aqueles que se batem pelo marxismo stricto sensu (crítico aos moldamentos neoliberais na sociedade, cultura, etc) e aqueles que tem optado aberta ou indiretamente pelas ideologias liberais (um liberalismo de esquerda, identitário na esmagadora maioria das vezes, que tem pouca identificação com o movimento revolucionário dos trabalhadores e se aproxima ou se alia mais diretamente aos movimentos do campo da subjetividade pós-moderna e de classe média).

Tenho observado muito isso na faculdade. Na universidade isso fica mais patente mesmo. Noto isso no convívio com a molecada, observando suas ideias, as coisas com que se importam, suas prioridades e suas reações perante as discussões que são colocadas no cotidiano. 

O caso da jovem Giovana Letícia (é esse o nome da sister do BBB 24) é representativo dessa guerra ideológica travada, do duro assédio dos aparelhos ideológicos que captam a consciência inclusive de pessoas que por sua formação costumam estar mais protegidas de seus tentáculos. Ideologia é coisa séria. Ou a gente toma cuidado ou o sistema traga a gente pra matrix... É assim que funciona.




sábado, 30 de dezembro de 2023

Semente de Vida

Resenha do livro


Peguei esse livro pra ler agora na última semana do ano; gostei e quero indicar. 

Semente de Vida - Rejeição e aceitação de filhos LGBT em lares cristãos é um livro escrito a muitas mãos. Muitas mesmo. O livro é fruto de uma pesquisa muito dedicada e elaborada; um livro assinado por quatro autores, com um conselho editorial de mais quatro pessoas, com o testemunho escrito de dez colaboradores e mais quatro entrevistados. O resultado é realmente muito interessante. 

O livro traz um apanhado de pesquisa mais acadêmica no início, apresentando o tema em sua complexidade. É um tema delicado, com múltiplas referências e que traz em si diversos pontos de vista a serem considerados e debatidos. O livro faz isso muito bem, com falas de pais de filhos LGBT ao longo das páginas, exemplificando as problemáticas. Embora o assunto traga vários fatores e perspectivas, o enfoque do livro é a relação da pessoa arco-íris com a família. 

Lá pela metade do livro vem os testemunhos, e ao final uma entrevista com uma pesquisadora de fundamentalismo religioso no Brasil. 

Os testemunhos são fortes, muito tocantes. Ao longo dos capítulos há os trechos das entrevistas e é tudo muito permeado de preciosos ensinamentos sobre a vida, sobre como as pessoas precisam aceitar as diferenças, acolher a diversidade e aprender a se desligar de preconceitos e de idealizações. Aceitar um filho LGBT é dar liberdade para que o filho siga seu caminho. Em geral os pais criam muitas expectativas sobre as crias. O choque de descobrir a homossexualidade em casa é também a quebra de uma idealização, de imaginar o filho num casamento convencional, com filhos, etc. Soma-se a isso o preconceito nos círculos sociais da família, principalmente nas igrejas. O livro traz impactantes histórias de igrejas que simplesmente excluem a família inteira da comunidade ao tomarem ciência de casos de homossexualidade.

Nas últimas décadas a sociedade tem evoluído muito com relação ao entendimento da sexualidade humana, da naturalidade da homossexualidade e da fluidez de gênero em alguns casos. Mesmo assim ainda há muito preconceito e confusão. Sobretudo em lares religiosos e comunidades de fé. As famílias, como dito, sofrem muito com a descoberta de uma sexualidade não-normativa em seus filhos, com a pressão social, com o abalo por conta da inusitada e inesperada novidade; o que na maioria das vezes enseja relações de abuso e violência no convívio doméstico. É de se imaginar as coisas que acontecem, mas o livro surpreende com relatos de comportamentos realmente muito estranhos, coisas assombrosas, que contrariam o atual avanço da conscientização sobre o assunto.

A preciosidade deste trabalho é trazer a aplicação acadêmica em busca dos conceitos aliada aos relatos diretos de pessoas e famílias envolvidas com a questão da militância LGBT. O livro conta com a participação de inúmeros especialistas. Há psicólogos, psicanalistas, teólogos, professores, gente da academia, pesquisadores, etc. Gente qualificada, que se debruçou sobre o tema e que trabalha nos grupos de apoio à causa LGBT. 

Os depoimentos de superação dos pais são alentadores; bem como os depoimentos de pessoas que conseguiram se libertar das teias do conservadorismo e da violência e que hoje podem se expressar na plenitude de suas potencialidades, na inteireza de sua liberdade, de sua identidade e entendimento humano. 

Semente de Vida é uma obra que precisa ser divulgada e espalhada pela sociedade, nas nossas escolas, universidades, igrejas. É um livro que condensa o essencial das questões em torno da aceitação da diversidade e dos paradigmas que estão sendo quebrados no campo da religião. É um livro para evangélicos, para católicos, mas também para os que não professam religião alguma e se interessam e desejam aprender sobre o assunto. Semente de Vida é um livro para se perder preconceitos, para se emocionar e para se humanizar. 

Que a bondade e a misericórdia do Senhor, Rei do Universo, alcance toda criatura e esclareça todos os corações. Somos todos filhos do mesmo pai. É bobagem pensar que Deus vai se ressentir ou lançar no inferno (como os reacionários falam) filhos seus que expressam uma sexualidade desviante de padrões que são culturais e atrelados ao tempo. 

A sexualidade humana é muito mais complexa e abrangente que o curto entendimento daqueles que veem na sexualidade e na afetividade, nas expressões de gênero e identidade uma pobre oposição binária, simplista e caduca. O ser humano é muito mais! E o amor e a beleza do Eterno se expressam nos corpos e na vida de quaisquer pessoas.




sábado, 5 de agosto de 2023

Cinzas do Juquery . Livro de memórias

Não é a primeira vez que trago aqui no blog o assunto anti-manicomial. Com certeza não vai ser a última. É um dos temas que me fascina na vida, assim como tudo ou quase tudo que é relacionado à contracultura, ao que é tachado como indesejável, tabu, ou subversivo e contra-hegemônico nessa sociedade doentia em que a gente vive. Recentemente, inclusive, fiz aqui uma crítica sobre um filme que retrata o movimento hippie. Enfim, são temas recorrentes neste blog. E a crítica, a arma da crítica, a visão crítica, é o que desejo deixar fluir. 

Essa semana me caiu na mão o livro Cinzas do Juquery. Como eu me interesso por tudo o que diga respeito à psiquiatria, loucura, manicômio e afins, comecei logo a ler.

O livro é a história de um auxiliar de enfermagem que ficou 27 anos trabalhando no complexo do Juquery, em Franco da Rocha, entre as décadas de 60 e 90. O complexo do Juquery era gigantesco, chegando a comportar 18 mil internos, o dobro de sua capacidade. Era formado por várias colônias, um manicômio judiciário e um hospital central. 

José da Conceição, o funcionário que reuniu suas memórias neste livro, era migrante baiano, chegou em Franco da Rocha aos 17 anos e em pouco tempo entrou no serviço do hospital psiquiátrico via concurso público. Logo que ingressou foi enviado para o manicômio judiciário, onde permaneceu 18 anos. Então a primeira parte do livro é mais sobre psicopatas de alta periculosidade em uma rotina de cadeia do que sobre o sofrimento psíquico exatamente. E aí José da Conceição desfia uma série enorme de histórias pesadas e inusitadas. Algumas muito engraçadas, outras, em sua maioria, assustadoras e de embrulhar o estômago. O livro todo é muito pesado, apesar dessas muitas histórias que fazem rir que mencionei aí acima. 

A começar pela primeira parte do livro, com a descrição da prisão, passando depois pelas colônias, com suas especificidades (porque eram pavilhões que abrigavam doentes com diferentes quadros), o livro é recheado de histórias de desumanização e abandono, histórias de pessoas que foram atiradas num poço de degradação física e moral, histórias de assassinatos, violência permanente, sujeira, amontoamento de gente, etc. Como num campo de concentração nazista, só que piorado, com pessoas irreconhecíveis por suas cabeças raspadas, com trajes esfarrapados, pessoas abatidas e desdentadas, a maioria absoluta impregnada de tarjas-preta e completamente alheia à realidade. 

José da Conceição pegou a pior fase do hospital psiquiátrico, onde o Juquery já estava completamente lotado e sucateado, caminhando para o fim de um ciclo; porque logo viria a reforma psiquiátrica e o hospital passaria a ser desativado gradualmente. Mesmo chegando ali no final dos anos 60, José da Conceição chegou a preseciar sessões de eletrochoque. Os relatos são impressionantes, bem como os relatos das rebeliões no pavilhão judiciário, os assassinatos, os serial killers famosos que o autor conheceu por lá, suas personalidades sombrias e enigmáticas. 

Outro elemento constitutivo da obra são os relatos escatológicos. Acredite, é um livro difícil de ler em alguns trechos. Inumeráveis histórias dos pacientes em meio à fezes e urina, muitas vezes manipulando as fezes com a mão, atirando as fezes uns nos outros ou nos médicos e funcionários. Curiosa a relação do doente mental em estado avançado com o manuseio das fezes. 

Tem muito sangue na história também, o relato de assassinatos que ocorreram entre as paredes do Juquery, e os de fora, que fizeram muita gente ir parar lá dentro. O relato dos quadros patológicos, dos remédios utilizados, dos procedimentos hospitalares; a psicologia do sujeito que era funcionário, seus sofrimentos e dificuldades; inclusive a história de um funcionário que não suportou o peso psicológico de trabalhar no manicômio judiciário e acabou se tornando interno numa das colônias, numa condição de profundo adoecimento mental. Não vou dar spoiler aqui. Vale a pena conferir. 

Enfim, o livro é muito interessante. Foi lançado na pandemia pela Editora Noir, que eu não me lembro de ter conhecimento antes.  Presumo que seja uma editora pequenininha. Apesar do livro ter uma bonita capa, com papel de revista, o material vem com muitos erros de digitação e revisão. Uma pena, porque é um livro que mereceria mais atenção e divulgação. 

Importante também dizer que José da Conceição, após esses anos todos trabalhando no manicômio judiciário, se graduou em enfermagem e inclusive fez pós graduação, vindo a trabalhar como professor e palestrante. É um sujeito culto e isso fica claro ao longo do texto. É realmente um achado esse livro. E além do mais José da Conceição é desenhista. Ao longo das páginas há muitos desenhos seus retratando os personagens do livro, e croquis e mapas da estrutura do complexo hospitalar. 

Recomendo muito essa leitura.




quarta-feira, 19 de julho de 2023

Jesus Revolution

Jesus Revolution (filme)

Uma experiência religiosa entre os hippies americanos 



Eu sou atraído muito facilmente por qualquer coisa relacionada à contracultura. Fiquei sabendo desse filme Jesus Revolution esses dias, e corri pra assistir.

Como já coloquei no subtítulo, se trata da história de um movimento religioso entre os hippies. Começou no início dos anos 70 nos Estados Unidos, entre pessoas do movimento hippie que buscavam uma experiência apartada das drogas. O movimento hippie, todo mundo sabe, era um movimento que preconizava a liberdade, a paz e o amor, e fazia isso através de uma revolução comportamental, de rompimento com os pensamentos retrógrados, cerceadores, moralistas e hipócritas das gerações anteriores e do que havia de estabelecido na sociedade ocidental. Pois bem, fazia parte disso o uso de drogas como abertura de uma viagem interior. Era um tempo de uso abundante de substâncias psicoativas como cocaína, heroína, maconha e o famigerado LSD. Era uma tentativa de abrir as portas da percepção, de uma viagem meio mística, libertária, uma coisa de mergulhar em novas ondas espirituais, contrárias à guerra e à violência, com experiências de amor-livre, de claras rupturas com o padrão ocidental de convívio. 

Acontece que nessa viagem muita gente foi e não voltou. A experiência com as drogas tirou muita gente de órbita. Muitos morreram de overdose.

Esse movimento religioso entre os hippies foi com a intenção de mostrar que a viagem das drogas não tinha dado certo, e que a verdadeira viagem tava num encontro com Jesus. O filme conta essa história ao tratar de Lonnie Frisbee, um maluco que viajava os Estados Unidos pregando para os hippies. Ele conhece o pastor Chuck Smith, líder de uma pequena igreja no sul da Califórnia, e juntos passam a formar um grande movimento, batizando milhares de jovens. 

Tava contando o enredo do filme pra um amigo e ele me disse o seguinte: 

- Mas que merda, Medina! Então esses caras viraram evangélicos; não era mais hippie o negócio. 

Pois é, tem essa controvérsia. Até que medida esse filme, por exemplo, não se inscreve na tentativa de gerar uma publicidade positiva à religião evangélica? Os evangélicos fazem isso, eles criam produtos de cultura, música, etc, pra fazer proselitismo. Os diretores de Jesus Revolution já trabalham com isso. Tem a mensagem religiosa como pano de fundo. Na verdade eles querem render tributo ao movimento evangélico norte-americano. A própria apresentação do filme, nas sinopses e cartazes, faz referência ao movimento religioso dos hippies como "o maior avivamento espiritual da história dos Estados Unidos". 

E só quem é evangélico não fica com o pé atrás com o que vem do movimento evangélico. Em se tratando de movimento evangélico, todo cuidado é pouco. Aqui no Brasil a gente conhece bem a história. Esses caras inclusive chegaram no governo, se associando ao bolsonarismo, e só fizeram merda.

Ok, tendo dito isto, tendo deixado esse parêntese bem claro, digo que o filme vale a pena ser assistido e debatido. É um filme bom, muito bem feito, melhor que muitos filmes que estão por aí em cartaz. O movimento hippie é muito interessante e a experiência religiosa e mística pode sim ser bonita e muito válida. Independente se o telespectador é religioso ou ateu, Jesus Revolution é um filme que merece sim ser assistido. Kelsey Grammer, no papel do experiente pastor, faz um excelente trabalho. Vale a pena reparar. A música é excelente, os enquadramentos, a fotografia, tudo bem feito. Só o roteiro que não é dos mais originais. Coisa que faz parte do gênero também. 

De todo modo, a experiência hippie traz uma série de elementos expressivos e consideráveis para a reflexão atual. Sem dúvida que é preciso revisitar as experiências de utopia, de contracultura e contra-hegemonia, as experiências de reconsideração ética, de inovações estéticas, de quebras de paradigmas e de progressismo comportamental. Cientes de que o movimento do capital vai querer cooptar tudo isso, de que as religiões e os misticismos poderão ser manobrados por mentes maquiavélicas, que se utilizarão de um visual descolado, de um discurso com gírias, com bastante choque ideológico, com estratégias das mais sorrateiras, com mensagens subliminares, laboratórios de catarses coletivas, hipnose, etc.

Aí a gente precisa ter um filtro pra passar o negócio. Não podemos prescindir da crítica. Nossa fruição estética, nosso encantamento com a beleza da história humana, tudo, absolutamente tudo, deverá vir acompanhado da crítica. Não é à toa que eu sou fascinado pela contracultura. Viva a crítica! Viva os que querem mudar o mundo!






terça-feira, 4 de abril de 2023

Com Yeshuah na jornada do silêncio

Poema místico



Yeshuah, mestre e Deus

Visitaria nossa cidade

E nós o esperávamos! 


Corações ansiosos na fria noite da vigília

Cabeças pendentes de sono

Nossos ossos doloridos

Nossos lábios ressecados.

Yeshuah chegou no limiar da aurora 

Rosto cortado pelo vento

Roupas em desalinho, ofegante respiração de caminhante.


Quisemos lavar seus pés 

Oferecemos água de nossos cantis

Queríamos a intimidade do mestre

Falar como próximos que partilham a camaradagem de uma jornada

Mas Yeshuah queria nos mostrar a virtude do silêncio. 

Falava aos nossos corações com seu olhar.


Quisemos que bebesse do leite fresco que providenciáramos, tínhamos mel e queijos, pães e frutas secas.

Mas o mestre nos presenteou com o jejum.

Haveria o tempo de comer

Primeiro queria caminhar conosco entre os raios multicores que atravessavam a manhã da nossa cidade. 

As ruas vazias...


Levamos Yeshuah ao nosso melhor jardim

Sentamos silentes aos seus pés. 

A manhã ainda fria, nossos corpos enregelados

O ar puro penetrando os pulmões em compassada respiração 

Os raios do sol incipientes.


Yeshuah nos fitou nos olhos

E um raio de sol atingiu-lhe as pupilas...

Belíssimas!

Nos revelavam a beleza da eternidade 

A ternura do absoluto 

A memória de quando ainda não existíamos

A paz de quando sequer tínhamos pensamentos. 


Mas era preciso levantar do nosso furtivo êxtase.

O mestre quis sair da cidade 

Pra nos levar ao cume de uma montanha.

Tínhamos que empreender marcha.


Um dia de caminhada e chegamos ao sopé de uma montanha.

Montamos acampamento 

Tratamos de fazer fogo

O céu era especialmente bonito

E a noite se anunciava fria.

Em torno do fogo o senhor da vida quis partir o pão

E o pão tinha sabor de algo absolutamente antigo e novo

De um revigoramento sublime 

Que recuperava o corpo e dava ao coração alegria singular e inaudita


Quiserámos de novo resistir em voltar à realidade. 

Yeshuah continuava a nos falar ao coração 

E nos surpreendeu com a ordem de levantar acampamento. 

Iria nos guiar montanha acima

Enquanto nos falava das coisas da vida e da morte 


Caminhávamos pressurosos

E então o mestre nos advertiu a ter calma e a saborear também o caminho, passo a passo

E suas palavras pareciam mesmo dar o ritmo para uma suave andança. 


Nos falou da cruz

Das horas da cruz

E lágrimas nos corriam abundantes pelas faces

Tão duras eram as desventuras que o mestre nos narrava

E como por um passe de mágica começamos a notar as semelhanças de nossas dores com as terríveis dores de sua cruz.

Ouvíamos o agoniado gotejar do sangue

Nossas gargantas secavam como se fosse meio dia com sol forte

E a fadiga nos molestava em sucessivas tentações e soluços. 


Era um trecho escarpado da subida

E sucumbir seria fácil não fosse a valorosíssima companhia do mestre.

Chegamos ao alto da montanha 

Yeshuah então nos permitiu tragar uma água de perdão. 


No céu escuro um corvo negro cruzou a noite 

E Yeshuah nos falava dos florescentes sonhos dos místicos de todos os tempos

Dos risonhos tremeliques do menino-Deus na manjedoura

Dos contemplativos nos desertos dos séculos 

De como se aproximaram do trono da manjedoura

E tocaram com suas mãos os pezinhos e as mãozinhas do recém-nascido de Belém. 

Ficamos absortos e como que caíamos por terra ante suas preciosas e doces palavras.

Yeshuah não nos deixou quedar pelo terreno 

Iria nos levar adiante

Foi quando percebemos que muito mais havíamos de subir

Que estávamos apenas num primeiro patamar de montanha 


Ouvíamos a voz do silêncio 

A noite ia se fazendo mais clara

E anjos acampavam ao redor

Cantando afetuosa e delicadamente as verdades do universo

De como Yeshuah é rei do universo 

E de como o cosmos é só um dossel de uma parte da glória de seu Pai

Que outros mundos celebram a magnitude, a bondade e a clemência de Deus

Que os olhos não podem ver sequer uma simples medida daquilo que é estabelecido nas alturas da imortalidade.

E que toda sorte de beleza emana do sopro terrível de Deus

Que é ao mesmo tempo tão espantosamente potente e mais doce que qualquer doçura que podemos conhecer na vida


Outros patamares de montanha galgamos em poucos e imperceptíveis passos de pessoa.

Já não trilhávamos por razão humana. 

As verdades que nos revelava o mestre nos faziam passar por sobre o tempo

E em convulsivas descargas de êxtase nos encaminhávamos ao cume


Os sentidos nos faltando... 

Apenas borbotões de estremecimentos nas visões maravilhosamente perfeitas

Cores e quadros inexplicáveis 

Histórias que nunca nos contaram

Os mortos que voltaram à vida

Os profetas e as virgens, os alucinados, os mártires e os arrependidos

O céu tomado de assalto na bruma exuberante da criação... 


E então a paz.

A paz perfeita. 

O silêncio novamente.